sábado, 14 de fevereiro de 2009

"Olhos cheios de infância"

"A partir da hora de jantar, quando não se distingue o ventinho nas árvores, a Rua Gonçalves Crespo recebe um pelotão de travestis e raparigas da vida. Discutem encostadas aos automóveis, compõem malhas de meias com uma falangeta de cuspo, tropeça-se no perfume como um obstáculo sólido. Algumas têm lhos cheios de infância por trás da pintura. Marcas de agulhas nos braços magros que coçam as comichões da heroína, calcanhares que vacilam nos tacões. Um chofer de táxi parlamenta com um travesti de nádegas ao léu e cabeleira tão platinada que encandeia. Pensando melhor ninguém tem olhos cheios de infância por trás da pintura, sou eu que sou parvo (...) Aqueles que me observam na Rua Gonçalves Crespo ou nem obsernam, avaliam são duros e secos. De madeira que a droga apodreceu por dentro e vai roendo, roendo. Qual infância! A infância é um luxo de quem possui tempo para a ter tido, uma saudade retrospectiva e enternecida de quando não há fome (...) Escreve olhos cheios de infância, anda. Assim como assim talvez te ajude a viver."
António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas